um teatro inefável

Constantemente ao lermos ou escrevermos algo pressupomos que nele estará registrado fatos. Como o que aconteceu seus registros e o que o fizeram acontecer. Do que se trata e qual é o motivo para existir e como foi pensado e elaborado. A questão é que nesta publicação você encontrará fragmentos que fazem parte da nossa vida e que também foram acontecendo. Primeiro porque o acontecimento é sempre maior do que os registros possíveis a se fazer, pois o que acontece na vida transborda e extrapola a toda sistematização de si mesmo. E segundo porque a linguagem tem seu próprio mundo, onde podemos mergulhar e fazer aparecer desdobrado àquilo que nem sempre aparece e é exatamente isso que quero mostrar aqui, esse texto foi escrito após o coletivo de Jovens Feministas em São Paulo iniciarem uma busca por linguagens diferentes para fazer política.
E a primeira linguagem a qual recorremos foi a teatral. Com a ideia de acordar nossos corpos, considerando que é no corpo onde esta o registrado a memória das opressões vivenciadas. Utilizamos o Teatro do Oprimido que foi elaborado por Augusto Boal para experiência.
Contudo, Entretanto…
Com tudo se faz necessário um espaço onde essa linguagem, a do corpo, pudesse trazer suas memórias vezes doloridas e invisíveis. E para isso é sempre necessário criar um próprio palco com fragmentos da realidade que pouco se vê, mas que também não esta escondida e só não se observa por pura estratégia de sobrevivência, talvez.
Entretanto não podemos contar-lhes tudo o que foi vivido, pois nem todas as coisas que nos aconteceram são visíveis e possíveis de serem ditas, mas posso dizer que somos todas outras nesse momento e que é possível saber por onde o potencia corre.
Com tanto que não nos reunimos com a ideia de falar sobre nossas pautas políticas de forma pragmática como fazemos nos espaços das conferencias de mulheres, de jovens, de LGBTT. Estes espaços têm sem dúvida a sua importância. Mas não podemos negar o quanto são cansativos e frustrantes ao passo que não somos nós quem decidi a efetivação dos debates e pautas que consideramos relevantes. Controversas da democracia, que discutirei mais adiante. Nesse sentido continuamos nos espaços onde gritamos no travesseiro, onde nossa voz é abafada, e depois não mais importa porque gastamos toda nossa energia e folego na direção errada.
Entre tudo é muito difícil escrever, entrar no campo da linguagem além do vivível e dizer sobre tudo aquilo que já é difícil nesse momento histórico, que tudo parece perdido e acabado, e o que nosso corpo demonstra, e nossa possibilidade de sujeito político e nossas potencias. E mais do que isso o investimento social que aparece como um espaço da liberdade mais murmura a repressão de uma força histórica que caí fúnebre em nossas costas nos perguntando o que é ser mulher? Jovem? Nesta cidade cinzenta?
E o que importa é algo muito singular que não se permite mostrar que não esta apenas ligada a nossa situação categoria, individual ou individualizante, mais que nos aparece como algo bem singular que se efetiva a partir de algo muito maior do que cada uma de nós, que nos excede por todos os lados. Isso que esta para além de nós mesmo e que passa por todas nós, esse algo grande, é o que vivemos.
O processo de criação do Com tudo entre tanto acabou em uma peça teatral que nunca foi apresentada, nem escrita. Mas foi produzida no decorrer de um ano, vários debates, leituras, atividades com o corpo. O que evidencia varias vidas não vividas que não se conta. E de potencias escondidas que não se busca encontrar, mas que na estética do oprimido se vê porque a memória esta nos nossos corpos que podem produzir uma máquina do aborto, a violência domestica, a fábrica da maternidade enfurecida na solidão, um jardim da loucura nas salas do telemarketing, uma adolescência cheias de marcas a reproduzir, e o príncipe encantado que nunca chega e por fim todas somos a tripla jornada….
O que estamos fazendo?
Somos costureiras e de maio até dezembro de 2012 nos encontramos todos às sábado nuas nas mãos levávamos nossos retalhos, pouco a pouco, pedacinho por pedacinho se juntavam um ao outro. Alguns eram muito feios e esdrúxulos, outros tinham sido batido na máquina muitas vezes para serem levados limpinhos limpinhos para esse encontro, mas não adiantava era nos muito claro por onde esse trapinho foi passando, seus rasgos, seus furinhos e suas cores desbotadas.
Aos sábados estávamos sempre muito cansadas, pois nossas semanas estavam sempre preenchidas por oito horas por dia de trabalho remunerado, quatro horas na Dutra, na Marginal tiete, no ônibus e no metro. Mais algumas horas na faculdade. E mais algumas horas com a arrumação na casa. E nos horários de tranquilidade, de madrugada, fazemos as unhas, a leitura daquele livro que adoramos, investigávamos mais sobre o teatro, escrevíamos a nossa peça.
Inicialmente não sabíamos o que poderíamos construir com cada um desses pedacinhos de pano ou mesmo se faríamos um belo vestido, uma toalha de mesa ou uma boa cortina para proteger nossas casas das poeiras da cidade.
No fim percebemos que não importava o resultado final o que desejávamos mesmo era fazer um tecido. Esse todo dos trapinhos poderia nos servir para qualquer coisa e ter qualquer função. A questão é que desejávamos estar junto e esse tecido seria apenas uma desculpa para esse encontro tão difícil, ardo, sem espaço ou razão.
Com isso criamos algo importante uma peça, um tecido, com vários pedacinhos de nós e de várias outras mulheres que não puderam estar conosco naquele momento.
Nosso corpo-morto então pariu vida que, ao invés, de ser expelida da própria máquina permaneceu nela a criação então foi o próprio processo de dar vida a si mesmo. Damos-nos conta, enfim, dos nossos ossos, da nossa potencia.
Levantei do sofá e percebi que era uma mulher-esqueleto senti a vibração desde o calcanhar no chão até o des-alinhamento da coluna movimentei um dos pés para frente e caí. “Quem não se movimenta não senti as correntes que as prendem” visualizei debaixo da estante a Rosa Luxemburgo que havia sido jogada. Mas ela estava ali presente tanto como os nossos ossos.
O corpo paralisado, preso, esticado no chão. Cada pedacinho deste corpo gigante estagnado por fios que nos prendiam anos a fio. Esse fio retocado nó por nó da historia, da medicina, da psicologia todos esses saberes falantes….
E o ponto para costura esse lindo tecido de retalhos, chamasse nó das opressões. Vocês sabem costurar? Vamos fazer?
Nesse caso tecer essa peça, esse encontro, esta veste é o mesmo como elaborar uma escrita de um corpo-múltiplo, que morde a maça do “pecado” ou do prazer, que encontra um milhão de Elas, as caçadoras numa noite escura da violência que procura seus ossos, aqueles que pariram o aborto, aquelas que abraçaram a rejeição do corpo-morto mais que conseguem ver florescer um jardim da loucura que promete um grande abraço inesperado, e nas dificuldades do trabalho domestico e do cuidado da solidão às trabalhadoras exploradas. E que guarda em suas entranhas o útero que sempre sangra
E o mais belo é que essa história não é “Una”, pois cada uma de nós a registramos da nossa forma. Então seria uma escrita de um corpo-multiplo uma história da multiplicidade de nós, que estamos vivendo. No dia da apresentação a diretora, e todas as atrizes, brigaram, não apresentaram e, além disso, acabaram com o coletivo.

 

Na primeira lua inteira de 2012.

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