Mulheres: narrativas e lutas.

Virgínea Wolf em 1929 na Inglaterra ao receber um convite para falar sobre as mulheres e a ficção, diz o seguinte:

“Tudo o que poderia fazer seria oferecer lhes uma opinião acerca de um aspecto insignificante: a mulher precisa ter dinheiro e um teto todo dela se pretende mesmo escrever ficção; e isso, como vocês irão ver, deixa sem solução o grande problema da verdadeira natureza da mulher e da verdadeira natureza da ficção.”

Resgato tal escrita ancestral para dizer que escrever é um desafio. Primeiro porque diferente das Inglesas desta época a maior parte das mulheres brasileiras não provem de condições materiais para executar tal tarefa, da escrita.

Segundo, porque no momento em que costuro esse texto; a América vê as democracias serem colocadas em cheque pelo autoritarismo. No Brasil há um golpe, machista, midiático, jurídico e legal e em curso. Na cidade de São Paulo onde vivo um trabalhadora sem teto Edilma foi baleada na barriga por um policial militar em uma manifestação. Nas proximidades da rua onde está localizada a casa que moro a mesma polícia militar baleou, matou, sumiu com três corpos, de adolescentes, e apagou os registros das câmeras das ruas. Nas ruas se prolifera, narrativas, fascistas: “A polícia não mata, faz limpeza!”. No congresso dos horrores o torturados Ustra tem sim, para o terror” com diz Bolsonaro. E complemento que essa fala agride não apenas a presidente eleita Dilma Rouseff. Mas a todas as mulheres brasileiras!

É como costurar uma roupa: corta, costura, dobra, costura de novo. E depois a observa. E percebi que estudar, escrever, pensar sobre gênero me pede um acumulo e sensibilidade sobre a luta das mulheres no Brasil, e a lutas das mulheres pobres!

Assim como, ao invés, de desconsiderar as ordens discursivas do conhecimento acadêmico e legitimo que tanto se debruça sobre isso, combatê-lo! Por exemplo, há tintas e tintas gasto, no último século gasto pela ciência política, na teoria, na filosofia ou seja por alguns homens, sobre igualdade, diferença e economia.

Existe um abismo colossal entre a nossa história e a história das mulheres européias, brancas. Ou os registros existentes da História. Nesse texto, busquei me conectar no não registro. A história das mulheres anarquistas, Dandara, Juremas, camponesas, quilombolas e várias outras lutadoras as quais não sei os nomes ou o que fizeram. Mas que resistiram ao longa desse século de luta…

Nós mulheres não tivemos tal privilégio de nos debruçar sobre tais palavras vazias no decorrer da história. Mas tenho algo a dizer sobre: os homens e as mulheres, são diferentes. Estas diferenças, construídas culturalmente, não é onde se registra o problema de gênero. A questão é que a partir dessas diferenças de gênero: masculino e feminino se construíram desigualdades. E as desigualdades se registram na historia de duas classes que são os ricos e os pobres, tanto na economia política do capital assim como na economia política do desejo, da divisão sexual do trabalho e no reconhecimento de direitos. Portanto, não existe igualdade entre homens e mulheres! Existem leis recentes no Brasil que formalizam a existência humana das mulheres enquanto sujeito de direitos.

Para se ter uma ideia de como a mulher era tratada nessa época, o homocídio era autorizado já no Brasil colonial, uma vez que o país regido pelas Ordenações Filipinas, que valia tanto pra Portugal quanto para seus territórios. As Ordenações davam ao marido o direito de matar a mulher caso a apanhasse em adultério ou por suspeitar a traição. O assassino só poderia ser punido, se este fosse de classe econômica inferior a da esposa morta. O assassino poderia ser condenado a três anos recluso na África.

Com a abolição e instaurada a República, acaba a situação dos negros e negras enquanto escravos, mas não acaba as senzalas pois os “serviços domésticos” foram onde os negros e negras se incorporam e continuavam habitando a senzala. Porque tanto os negros quanto o caipira não ocupavam lugares de trabalhador assalariado. E assim nasce o espaço urbano de São Paulo, onde tinham fabricas, cortiços, vilas, senzalas e quilombos.
Em poucas décadas a cidade de São Paulo teve um crescimento populacional muito grande. E houve uma supervalorização do centro. E na medida que isso foi acontecendo os negros e negras foram imediatamente expulsos do centro. E a construção das favelas fora a alternativa que sobrou! 

No Brasil República as marcas de violências contra as mulheres continuam, ainda no código civil de 1916 as leis fortaleciam a ideia de propriedade do corpo, da vida e da alma das mulheres, se sustentou os princípios conservadores onde em vários artigos está prescrito limitações de capacidade das mulheres em detrimento da decisão de seu pai ou marido. No Art. 242 prescreve que A mulher não pode, sem o consentimento do marido, onde normatiza 8 incisos, dentre eles ter propriedade privada ou bens, exercer profissões dentre outros absurdos. Lembrando que as mulheres negras sempre trabalharam, porque bizarramente na escravidão não tinham o estatuto de pessoas. O que faz ganhar força o modelo ideal da burguesia de “mulher-esposa-mãe-dona-de-casa-assexuada”. 

Entretanto, havia mulheres como Maria Lacerda de Moura, que era educadora em movimentos sociais na década de 20, escrevia em Revistas operárias e anarquistas que junto de muitos outras libertárias da época lutaram pelo voto das mulheres aqui mesmo em São Paulo. Também pautavam muito além disso, como a emancipação da mulher, que não existe sem a emancipação da humanidade; propõem a educação sexual e libertária; o amor livre; a maternidade livre e consciente; a livre união; criticam o casamento monogâmico e contratual burguês, discutindo também as relações hierárquicas existentes também no movimento anarquista, principalmente no que se refere às hierarquias com relação aos sexos, apontando e criticando o machismo nos meios operários.
Somente em 1932 as mulheres tiveram o direito ao voto. E em 1934, é que aparece na constituição que todos são iguais perante a lei citando sexo e raça. Mas de fato é apenas em 1988 que temos a definição de que todos são iguais perante a lei, com a definição de homens e mulheres proibindo a discriminação em função de sexo. Contudo, ainda vivemos sob leis que contradizem a igualdade. O atual Código Penal, de 1940, homens, criminosos que agem “sob o domínio de violenta emoção”, pode ter sua pena reduzida. São os chamados “crimes passionais”.
Na década de 60 até 80, muitas mulheres lutaram contra a Ditadura militar brasileira o que nos distancia da imagem midiática da mulher do lar. Estas mulheres foram para a guerrilha do Araguaia, fizeram guerrilha urbana, fizeram jornais que denunciavam as condições das mulheres na periferia. Posso citar dois jornais; “Brasil Mulher” e “Nós, Mulheres”.
No processo da Comissão Estadual da Verdade, por exemplo, Amelinha, Crimeia e muitas outras mulheres já na democracia, deram testemunhos dos crimes cometidos pelos militares e pelo Estado. Ambas citam processos de violência física e sexual, como choques elétricos na vagina assim como o sequestro de seus dois filhos na época com 6 e 7 anos. A Crimeia, por exemplo, em tortura e na prisão teve seu filho João.
Com estes vestígios autoritário já em em nossa democracia com toda cultura de impunidade e violência contra as mulheres legitimada pelo Estado, vemos hoje no Brasil dados alarmantes, entre janeiro e outubro de 2015 foram:

63.090 denúncias de violência contra a mulher ou uma denuncia a cada 7 minutos.

31.432 ou 49,82% corresponde a denúncias de violência física.

58,55% foram relatos de violência contra mulheres negras

19.182 denúncias de violência psicológica (30,40%)

4.627 de violência moral (7,33%)

3.064 de violência sexual (4,86%)

3.071 de cárcere privado (1,76%)

77,83% das vítimas têm filhos e que mais de 80% destes filhos presenciaram ou também sofreram a violência.

85,85% corresponderam a situações em ambiente doméstico e familiar.

(67,36%), as violências foram cometidas por homens com os quais as vítimas tinham ou já tiveram algum vínculo afetivo, como cônjuges, namorados, ex-cônjuges ou ex-namorados.

27% dos casos, o agressor era um familiar, amigo, vizinho ou conhecido.

*Os dados são da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR), a partir de balanço dos relatos recebidos pelo Ligue 180.


Além dos dados citados, onde se há uma canal entre a população e o governo, temos tantos outros dados que ao olharmos para a cidade também reconhecemos muitos espaços de luta e poucos de acolhimento e conforto para as mulheres sobre a realidade que as mulheres periféricas vivem sofridamente. Não temos direito à cidade. O Estado não garante as mulheres a andarem com segurança pelas ruas e nos transportes. Nossa liberdade financeira, passa muitas vezes pela dependência da existência de creches para os filhos. A vida política fica reduzida muitas vezes a espaços privados porque não tem onde deixar seus filhos ou por falta de espaço ou representatividade nas pautas.

Segundo Lefèbvre: “A cidade e o urbano não podem ser compreendidos sem as instituições oriundas das relações de classe e propriedade” e uma das primeiras opressões de classe como nos lembra Terezinha Gonzaga e Safiotti, é a dominação da mulher pelo homem que a transforma em propriedade e também os filhos.

Neste sentido temos um enorme desafio pela frente que extrapolam as fronteiras dos movimentos populares e feministas para que os espaços se organizem de forma democrática. Devemos reconhecer as mulheres como iguais em direito e compreender nossas especificidades de condição e situação construída historicamente. Com isso nos deparamos com no mínimo dois problemas: O primeiro é que o fato das mulheres estarem nos espaços de decisão significa que estas devem prover de tempo livre, se deslocar do “lugar de mulher” que é considerado como a cuidadora do lar, do marido, dos filhos.

O segundo é que nos espaços públicos existem uma ordem discursiva do que pode ou não ser dito, o quanto estamos apropriados da retórica masculina. Do olhar de julgamento do outro, além de conseguir transitar entre o diversos espaços de debate e disputa que são predominantemente ocupado por homens. Ou seja, é como fazer um debate no espaço público sobre o cuidado das crianças, por exemplo, mas que os homens não aparecem, por considerar este apenas um debate de mulheres, ou colocarem este como um debate “menor”. Enfim esses ainda são desafios para nós, mulheres e homens de esquerda. 

Retomando a pergunta inicial: Existe igualdade? Pode ser, na lei, enquanto cidadão com direitos civis, políticos e sociais. Mas essa igualdade na lei, no dever ser, não superou o que historicamente se produziu a partir das diferenças sexuais. Que foi a criação social dos gêneros; feminino e masculino. Que por sua vez, definiu papéis e funções sociais distintos entre “homens” e “mulheres”. E também uma relação de poder entre os gêneros que ao longo da história oprimiu, descriminou, e submeteu as mulheres a uma condição de segundo sexo. Nesse sentido a sociedade produziu uma desigualdade entre os gêneros.


Se homens e mulheres são diferentes, como podemos ser iguais perante a lei?

As diferenças entre homens e mulheres esta relacionada para o feminismo, que é um movimento político, filosófico e social que defende direitos iguais entre homens e mulheres, e não na dimensão do direito, como foi o caso da luta por igualdade, estão relacionadas com as diferenças do nosso corpo, de nossa identidade, o gênero que nos identificamos e até mesmo as orientações sexuais que escolhemos ou que somos inclinados. Ou seja, somos iguais porque somos diferentes.

Agora entre a lei e sua execução existe uma infinidade de coisas, ou mesmo como estas são aplicadas. Um exemplo disso é a lei maria da penha, principal lei que atende de forma especifica os casos de violência domestica. Primeiro que se queremos acessar a lei, devemos ir até a delegacia, e convenhamos que não é um lugar muito convidativo, tem muitos casos que além da violência domestica as mulheres ao procurarem instituições como esta sofrem violência institucional, como por exemplo nenhuma medida ser tomada para afastar o opressor. Temos diversos exemplos na mídia de mulheres que fizeram diversos boletins de ocorrência por conta de violência, como o caso de Elisa Samúdio, que acabou sendo assassinada!

Soma-se a isso ao tratamento do mercado ao corpo da mulher como coisa. A Mulata do prazer, a devassa , ou como publicidade da cervejaria, Brasil Kirin, antiga Schincariol, dizia: “é pelo corpo que se conhece a verdadeira negra”, o que na consciência coletiva coisifica as mulheres no aprisionamento do belo sendo o esteriótipo da mulher-branca-loira-magra e a mulher-mulata-gostosa. O que culminou com, por exemplo, dados do (IBGE) em 2010 mais da metade das mulheres negras 52,52% – não vivia em união, independente do estado civil. O que as feministas negras tem apontado é uma solidão da mulher negra relacionada com os afetos também modulados por uma formação de identidade nacional brasileira racista. E a questão que fica é até quando nos trataram como mercadoria? Chega, né! Mulher bonita, é mulher que luta!!

Mulheres que lutam por um teto!


Dentro do MTST a construção do espaço da mulher está em contínuo elaborar-se. Isto porque historicamente o meio político constituiu-se masculino e não é só tirar uma linha que ele não será mais assim e como magica tudo se resolve. É importante a orientação política para discernir como o movimento deve se desenvolver, mas têm que haver muito debate, compreensão e paciência para modificar várias formas de entender o papel da mulher. O movimento popular tem o compromisso de conversar, argumentar e convencer mulheres e o homens da periferia sobre seus papéis nos espaços de decisão e atuação.

Hoje as mulheres do MTST são fundamentais em todos os coletivos do movimento, não só porque há paridade, mas porque elas refletem a base social do movimento que atualmente são sua maioria. Os motivos podemos sondar, como o crescente número de famílias chefiadas por mulheres, independência e dependência econômica (não são raras as vezes que mulheres dizem que ao conquistarem as casas se separarão de seus maridos), violência doméstica e entre outros fatores que levam as mulheres a iniciarem suas vidas políticas.

E nesse emaranhado de possíveis formas de se aproximarem do movimento, na grande maioria das vezes pela porta de uma acampamento ela descobre que tem voz, ou seja, através da rotina do acampamento essas mulheres vão tomando gosto pela oportunidade de decidir. Se se tornam coordenadoras, votar em quem vai entrar pra coordenação, decidir onde serão os espaços coletivos, como as cozinhas, onde serão realizadas as reuniões do grupo de acampados de onde elas faz parte, onde serão espaço de lazer e tudo mais que decidirem fazer!

As ocupações que são espaços autônomos e temporários que nos propicia a tomar consciência de si e do lugares que pertencemos na sociedade, é um espaço onde os conflitos são acirrados a todo tempo, já que para o judiciário a propriedade privada vale mais a que a vida dos sem-tetos. Ou quando quem mais faz e decide, que na sua maioria são também as mulheres, que não necessariamente trazem consigo o debate feministas, mas que estão dispostas a lutar pela sua moradia, pela saúde, pelo transporte para garantir um vida digna para si e para seus filhos e filhas. 

Nesse cotidiano, elas percebem que o MTST não é só mais um movimento de moradia, mas um lugar que o antigo formato de se relacionar com o mundo pode ser diferente. E aí, que elas começam a se compreenderem de uma outra maneira, se redescobrem agora como parte de um coletivo e que podem decidir.


Portanto, a base do MTST é muito heterogêneas. Compostas por famílias que estão nas periferias da cidade. Muitas delas lideradas por mulheres. De certo que no MTST as mulheres ocupam lugares de decisão. Muitas mulheres são dirigentes do movimento. E a representação política é importante e quanto mais as mulheres estão nos lugares de decisão e de construção do movimento mais o movimento ganha força e potencia revolucionária. Porque a superação da dominação de homens sobre as mulheres mexe infinitamente na estrutura do capitalismo e como o mesmo se fundamenta na divisão sexual do trabalho, a sociedade conseguirá ultrapassar a barreira da existência de somente dois gêneros, macho e fêmea e que um se sobrepõe sobre o outro em todas as esferas da vida.

Nesse sentido problematizamos a representação política e também a estrutura patriarcal que está enraizada em todos os meios. Inclusive o apoio dos companheiros que são pró feminismo a fazermos esse debate é importante. Não com um pedido de licença nossa para com eles, mas com o ouvir o que temos a dizer e apoiar nossas decisões, isso é uma postura muito importante que fortalece as mulheres e faz com que os homens tenham que entrar em conflito com a masculinidade, outro eixo relevante e também opressor.

Também é necessário que as narrativas das mulheres, assim como uma estrutura que possibilite as minorias se colocarem sejam amplificadas e valorizadas. Como por exemplo, nos atos que fazemos no dia 8 de março. Ou na marcha do orgulho gay que aconteceu na Ocupação Vila Nova Palestina. Ou como as importantes referências femininas que temos hoje na coordenações de acampamento, regionais, estaduais e nacionais em todos os estados organizados pelo MTST.

As mulheres do MTST, não provem de um teto e o espaço que temos que podemos dizer de nosso, são as ocupações. Território onde nos encontramos, debatemos, organizamos atividades e planejamos o futuro. Por isso, as ocupações assim como o movimento é para nós um espaço de escrita de planejamento da cidade que queremos, das relações afetivas que queremos ou que não queremos. Lugar onde aprendemos que somos sujeito da história, que se apresenta e se mostra como sujeito falante. E para finalizar, que ninguém se esqueça: Quando uma mulher avança ninguém pode retroceder!!

Mídia Ninja

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